sábado, 11 de setembro de 2010

O ponto mais ao norte do planeta

(Valor Econômico / JC) É do vilarejo de Ny-Ålesund, sede de uma comunidade científica internacional, que se lançam foguetes para estudar a capota polar e se mede a velocidade da rotação do planeta

No Kongsfjorde, o "Fiorde do Rei" em norueguês, ao pé das montanhas, existe um povoado de contos de fada. É um vilarejo pequeno, um punhado de casas coloridas em uma curva de mar azul. À esquerda da vila, três montanhas de picos pontudos formam um círculo harmônico, uma espécie de coroa natural que confere mais realeza ao lugar.

Duas grandes manchas brancas interrompem o cinza-escuro da cordilheira - imponentes geleiras que avançam até a água. Com alguma sorte, dorsos brancos de baleias belugas aparecem na baía. Ny-Ålesund é de outro mundo.

"NY ÅLESUND 78°56'N 11°56'E" diz o letreiro em maiúsculas vermelhas, pintado à mão, no pequeno atracadouro. É nesse código cifrado que Ny Ålesund (pronuncia-se como se fosse uma palavra só, "nialezun") recebe seus visitantes. Evidentemente, ninguém chega a este fim de mundo por acaso. Quem bate na comunidade permanente mais austral da Terra, longe de tudo e todos, conhece suas lendas e está atrás de aventura ou de ciência.

A cidade mais próxima, Longyearbyen, fica a 107 quilômetros, o que não é muito para regiões com estradas. Aqui significa uma noite de barco ou esperar vaga no pequeno avião que, no verão, faz a rota algumas vezes por semana. O polo Norte fica a 1.232 quilômetros daqui, mais perto que São Paulo está de Salvador.

Ny-Ålesund tem outras esquisitices: os celulares e as funções WiFi e Bluetooth dos laptops têm que ser desligados bem antes de se chegar ao povoado. Aqui vigora "silêncio de rádio". Trata-se de um lugar totalmente voltado para a ciência e qualquer canal estranho de comunicação pode apagar séries históricas de dados preciosos.

De bucólico, aqui, só o verde modesto da tundra, as florzinhas e as pequenas raposas. As casinhas fofas abrigam modernas estações de pesquisa de uma dúzia de países. De Ny-Ålesund lançam-se foguetes para estudar a capota polar e mede-se a velocidade da rotação da Terra em um megarrádiotelescópio operado pela Noruega com apoio da Nasa. Estão aqui institutos da Inglaterra, Alemanha, França, Japão, Coreia.

O conjunto de casas laranja com tamancos na porta, da Holanda, estuda ecologia focando em uma espécie de ganso que vem se reproduzir em Svalbard. O centro sueco faz medições detalhadas do CO2 na atmosfera.

Os italianos trabalham em estudos climáticos relacionados a neve, gelo e sedimentos marinhos. Os chineses, com a estação Rio Amarelo e o tradicional casal de leões no pórtico, também batem ponto. A Índia é a mais nova da turma, mas a tromba do deus Ganesh na entrada já está brilhante de tanto o pessoal passar a mão em busca de sorte.

Só 35 pessoas moram em Ny-Ålesund durante o inverno e são 180 no verão, de umas 20 nacionalidades. Ninguém pode ficar aqui mais que cinco anos, é a regra. A cidade lota com 200 pessoas, o número de camas disponível, e tem problemas sazonais de ocupação. Todo mundo quer vir no verão, mas poucos enxergam muita graça no longo, rigoroso e escuro inverno polar.

O crescimento de Ny-Ålesund esbarra em sua história e no futuro verde que quer perseguir, mesmo se hoje ainda é movida a diesel. A metade das 70 construções é tombada pelo patrimônio histórico. As ruínas se misturam ao que há de mais moderno, o paiol velho de caçadores de morsas pode estar ao lado de uma poderosa antena.

É assim mesmo: o bote velho foi largado em frente do prédio do laboratório marinho de última geração. A maria-fumaça que levava carvão da mina ao porto parou quase em frente do centro de informações turísticas interativo que funciona sozinho.

Também não há atendentes no tradicional posto dos Correios. Compra-se postal e selo de urso polar na loja, escolhe-se um dos carimbos com a latitude de Ny-Ålesund e joga-se na caixa. Uma semana depois, o cartão com as focas chega ao Brasil, misteriosamente enviado pelas renas do polo Norte.

"Depois de cinco semanas trabalhando duro em Ny-Ålesund, parece estranho dizer, mas me sinto um pouco triste de ir embora", revela o oceanógrafo alemão Ulf Riebesell, o chefe de um grupo de 35 pesquisadores que vieram ao Ártico estudar o impacto do CO2 nos oceanos, na véspera de voltar a Kiel, onde mora. "A vida é simples aqui."

Todas as instalações de Ny-Ålesund, as velhas e novas, o porto, o aeroporto e até as ruelas pertencem à Kings Bay, estatal norueguesa que cuida do lugar. O orçamento anual é de 15 milhões de coroas norueguesas (aproximadamente R$ 4,2 milhões) para desenvolver novas instalações de pesquisa e reformar o patrimônio histórico.

Há também os recursos dos pesquisadores, que pagam pelo aluguel das estações, por comida no refeitório, acomodação e transporte de equipamentos. "Este é um negócio não lucrativo", explica Roger Jakobsen, o diretor da Kings Bay. "Todo o dinheiro que entra deve voltar à pesquisa."

Nem sempre foi assim. Antes de ser a cidade dos cientistas, o povoado passou pelos ciclos de exploração dos recursos naturais de Svalbard. Foi um caçador de baleias inglês que encontrou carvão no solo daqui, em 1610. A primeira mina começou a funcionar três séculos depois. A vila foi esvaziada durante a Segunda Guerra para voltar revigorada e com uma sociedade de base familiar.

Os mineiros trouxeram suas mulheres, havia escola para as crianças, vacas, cavalos e porcos no quintal. Mas a mineração era difícil, com túneis estreitos e profundos, bem abaixo do nível do mar. Os acidentes eram frequentes.

A extração de carvão teve fim trágico em Ny-Ålesund. Em novembro de 1962 uma explosão matou 21 pessoas. Onze corpos continuam dentro da montanha.

"Imagine o impacto que o acidente teve nessa sociedade", diz Jakobsen. "Os últimos barcos estavam indo embora por causa do inverno. As pessoas tinham que ficar aqui, durante as festas de fim de ano, sentindo o cheiro do gás, isoladas com suas tristezas. Deve ter sido bem difícil." Por causa da tragédia caíram o primeiro-ministro e todo o governo da Noruega. Foi o fim da exploração de carvão em Ny-Ålesund. E o começo do ciclo das pesquisas que a transformou na estação internacional científica do Ártico.

O busto de Roald Amundsen, o herói norueguês das explorações polares, no meio do pequeno largo, revela a fama do vilarejo. Ainda está aqui o mastro no qual ficou ancorado o Norge, o dirigível com o qual Amundsen e o italiano Umberto Nobile partiram de Ny-Ålesund e sobrevoaram o polo.

A casa onde o mito norueguês planejou a viagem está sendo restaurada. Ímãs de geladeira com seu rosto, mapas do Ártico, reproduções de pôsteres antigos, além de miniaturas de ursos e outros cacarecos, estão à venda na única loja da cidade. Os pesquisadores a usam para comprar chocolate e pasta de dente. A loja é aberta naquelas duas horas em que os turistas desembarcam dos transatlânticos. É quando Ny-Ålesund se transforma.

Normalmente é difícil esbarrar com alguém pela rua. Os cientistas estão no campo ou nos laboratórios. Um ou outro passa de bicicleta ou caminha com uma vareta para o alto afastando as aves nervosas em proteger suas crias. Há uma calmaria incrível nestas latitudes. A chegada dos grandes navios é um choque de realidade.

Em julho, os navios de grande porte se alternam no porto. Um deles traz 3.500 passageiros e é muito maior que o cais. Outro carrega 1.700 turistas. Ny-Ålesund congestiona. Na saída há bitucas de cigarro pelo chão, que o pessoal da Kings Bay coleta e joga em uma das 28 diferentes categorias de lixo que reenviam ao continente (só de lâmpadas são dez). No verão de 2009 foram 31 mil turistas. "É uma loucura para um lugar tão pequeno como este", diz o diretor.

Barcos grandes que utilizam óleo pesado e poluem mais têm os dias contados no Kongsfjorden. A partir de 2015 não poderão mais entrar na baía, a nova legislação proíbe. Os grandes barcos pesqueiros estão proibidos desde 2007. "Eram desastrosos para o ambiente", diz Jakobsen. "Queremos ter um lugar que cause o menor impacto possível."

Só falta resolver uma questão-chave, em Ny-Ålesund e no mundo todo: a produção de energia. Aqui não venta e durante o inverno não tem um pingo de luz, o que complica a geração de eólica e solar. Há estudos sobre uso de biomassa e um programa de eficiência energética em curso que, por exemplo, desliga a luz de dentro das estações quando não há ninguém e pode reduzir o consumo em 40%.

Passar um tempo neste topo de mundo é uma experiência que acontece uma vez na vida. O cientista Sebastian Krug, responsável por organizar a logística da viagem do grupo europeu interessado no efeito do CO2 no mar do Ártico, diz que as semanas de trabalho em Ny-Ålesund foram intensas e sensacionais.

"As pessoas eram ótimas, muito profissionais, todos trabalhando muito. E as condições de trabalho, muito melhores do que você esperaria encontrar em um lugar tão próximo ao polo Norte", conta. "Sentar à minha mesa em Kiel e escrever a minha tese não é tão excitante como dirigir botes velozes ou escalar com rifles e pistolas de sinalização."

2 comentários:

  1. Depois que conheci Ushuaia, a cidade mais setentrional do mundo, indo à Antartica, pensei em também conhecer a mais ao norte. Vou descobrir como chegar lá. Deve ser mais interessante que ir á Terra do Fogo.

    Maria Glória Santos

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