terça-feira, 29 de abril de 2014

Química da vida no tubo de ensaio


(Mensageiro Sideral - Folha) Ao simular as condições dos oceanos da Terra primitiva, um grupo de cientistas liderado por Markus Ralser, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, testemunhou o surgimento espontâneo de reações químicas complexas que até então eram consideradas província exclusiva do metabolismo de seres vivos. A descoberta recém-publicada coloca a ciência um pouco mais perto de decifrar um dos maiores enigmas com que já deparou: a origem da vida.

O achado em essência demonstra que uma química muito complexa pode emergir sem a ajuda de enzimas — proteínas construídas por seres vivos que ajudam a promover as reações mais essenciais, como aquelas em que açúcares são convertidos em moléculas contendo energia para uso pelo organismo.

Mas, antes que você se anime demais, não, ainda não sabemos de fato como surgiram as primeiras formas de vida. O que temos até o momento são várias peças separadas de um quebra-cabeças que a natureza teve pelo menos vários milhões de anos para montar sozinha. Essa agora é só mais uma peça — e uma potencialmente bem importante.

ÁGUA, SUA LINDA
Não é à toa que os astrobiólogos hoje consideram a busca por água o fator primordial para tentarmos encontrar outras formas de vida no Universo. Ela cumpre papéis essenciais em todas as formas de vida conhecidas, e até agora não encontramos nenhuma outra molécula que possa servir de substituta.

Contudo, ela não faz todo o serviço sozinha — e em alguns casos pode até atrapalhar. Felizmente, os oceanos da Terra primitiva tinham muito mais que só água: em sua composição, identificada por meio de sedimentos marinhos, também havia grandes quantidades de ferro, além de fosfatos e outros metais.

Após recriar com a máxima fidelidade possível uma amostra desse oceano primitivo, que existia em nosso planeta cerca de 3,8 bilhões de anos atrás, os pesquisadores pegaram algumas moléculas complexas que eles sabem estar no “meio do caminho”, por assim dizer, de reações necessárias ao metabolismo dos seres vivos, e as adicionaram à mistura.

Nos seres vivos, essas moléculas são processadas com a ajuda de enzimas para chegar até suas formas finais, mais úteis. Ali, naquela amostra, não havia enzima nenhuma. O que aconteceria? Ficaria tudo na mesma? A água do oceano primitivo destruiria as moléculas?

O suspense tomou conta do laboratório durante as cinco horas em que as amostras permaneceram aquecidas a cerca de 70 graus Celsius. Quente demais para qualquer enzima que conheçamos, mas uma temperatura comum nas proximidades de fontes hidrotermais — estruturas que mais lembram chaminés no fundo do oceano, alimentadas pelo calor que emana das entranhas do nosso planeta. (Muitos cientistas acreditam que esses ambientes possam ter sido o berço das primeiras formas de vida, o que explica a escolha feita no experimento em questão.)

E aí, finalmente, a recompensa: os cientistas descobriram que o ferro ajudava a “empurrar” as reações químicas adiante, em rotas extremamente parecidas com as seguidas pelos metabolismos dos seres vivos modernos. Mas sem as enzimas para tocar o negócio! Entre as 29 reações metabólicas observadas, uma se destacou: a que produziu ribose-5-fosfato. Trata-se de uma molécula precursora do RNA — “primo” do DNA que é capaz, como ele, de armazenar informação genética e, portanto, se submeter aos processos evolutivos darwinianos.

Isso explica como a vida surgiu? Não. Mas mostra que algumas reações que antes achávamos complexas demais para ser executadas a partir de uma química prebiótica (ou seja, anterior à vida) na verdade acontecem em um experimento de meras cinco horas!

A ORDEM DOS FATORES
O resultado faz Ralser e seus colegas cogitarem que talvez seja o caso de repensar em que sequência aconteceram os eventos químicos imprescindíveis à origem da vida.

A visão mais tradicional, baseada nos primeiros experimentos que abordaram a questão, em 1953, sugere que primeiro surgiram as proteínas, capazes de fazer metabolismo. Mais tarde elas seriam reunidas aos ácidos nucleicos (DNA e RNA), protegidas num sistema fechado por uma cápsula de lipídeos, para formar as primeiras células vivas. Em resumo, a ordem dos fatores seria: proteínas -> metabolismo -> DNA e RNA

Uma visão mais moderna sugere que tudo pode ter começado com o RNA. A hipótese é motivada por sua versatilidade. Ele não só é capaz de guardar informação genética, a exemplo do DNA, como também pode conduzir certas rotas metabólicas, como as proteínas. Ou seja, ele poderia ser, sozinho, a base da vida. Só mais tarde, com a evolução, ele seria destronado da função de portador principal da informação genética pelo famoso DNA e ganharia a companhia de proteínas mais eficazes que ele para tocar esse negócio de metabolismo. Segundo esse esquema, teríamos: RNA -> metabolismo -> proteínas e DNA.

Uma dificuldade particular desse modelo é a de como fabricar RNA a partir de química prebiótica que envolva água. (O Mensageiro Sideral já abordou o trabalho de Steven Benner, que sugere que o RNA só poderia ter nascido em Marte e depois migrado para a Terra, tamanha a dificuldade em produzi-lo a partir de química simples em meio aquoso.)

A pesquisa de Ralser, contudo, pode apontar outra solução para o dilema. “Essas observações revelam que as sequências de reação que constituem o metabolismo central de carbono poderiam ter sido forçadas pelo ambiente oceânico rico em ferro do começo do Arqueano [cerca de 3,8 bilhões de anos atrás]“, escreveram os pesquisadores em trabalho publicado no periódico “Molecular Systems Biology”. Teríamos, portanto, primeiro de tudo o metabolismo, e depois RNA, proteínas e o DNA.

Uma vantagem dessa proposta é que, tendo metabolismo de saída, ainda que numa versão menos eficaz, mais primitiva, você poderia encontrar reações como as que formam o RNA, mesmo em ambientes aquosos. Outra vantagem é que um oceano que faz metabolismo sozinho, logo de cara, encurta bastante o caminho para formas de vida, explicando o porquê de os primeiros seres vivos terem surgido tão depressa no registro fóssil, praticamente assim que as condições na Terra foram favoráveis.

Uma terceira, especialmente pertinente para a busca por vida extraterrestre, é que não há por que não supor que outros oceanos espalhados pelo Sistema Solar, como os de Europa (lua de Júpiter) ou Encélado (de Saturno), não possam ter produzido circunstâncias similares, condutivas de metabolismo e, por fim, seres vivos.

Bacana, né? Mas não é o caso de comemorar muito. Afinal, não custa lembrar novamente que os pesquisadores já começaram seu experimento com moléculas de certa complexidade, e ninguém sabe ainda como o oceano primitivo poderia ter chegado a esse ponto inicial sozinho. Por isso, ainda é cedo até para dizer que o metabolismo de fato realmente precedeu RNA ou proteínas. Nenhuma das três rotas de surgimento da vida descritas brevemente acima foi descartada, no atual ponto do jogo.

Por enquanto, o enigma da origem da biosfera terrestre — o enigma da nossa origem, portanto — permanece sem solução. Mas a ciência se aproxima cada vez mais de fechar essa conta.

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